domingo, outubro 21, 2007

A retratista

Chegou com pressa, jogou-se no banco, recolheu uma das pernas e se sentou em cima. Abriu a bolsa e retirou seu caderno. Ela o abriu automaticamente, na página marcada pelo lápis. Sua ansiedade, sua pressa, seu aparente quase-desespero, tudo culminava naquele momento. Só então respirou fundo. Não olhava o mundo a sua volta simplesmente porque ele não existia até aquele momento: seu caderno aberto sobre a perna e o lápis em uma das mãos; com o corpo apoiado sobre o braço e a página totalmente em branco à sua frente, ela estava pronta. Olhou em volta e tudo começou a tomar forma: malas, lanchonete, balcão de passagens, o relógio, ônibus, lixeiras e as pessoas. Deu-se conta que a rodoviária estava movimentada e que aquele era o cenário perfeito: a espera, o cansaço, o calor, tudo parecia lhe favorecer, tornando a vida preguiçosa e lenta. Voltara ao mundo apenas por alguns instantes, para uma busca ávida, inquieta, porém rápida. Seus olhos percorreram as filas de embarque à sua direita, as pessoas em pé no balcão à esquerda e os bancos à frente até que ela fixou o olhar. Toda a sensação de inquietude pareceu desaparecer e o lápis tomou vida. Os traços, a princípio, não faziam sentido para os vizinhos no banco da rodoviária, que arriscavam um olhar curioso. Aos poucos o velho adormecido no banco, com a cabeça apoiada na mão, a pele enruguecida, cansada, a camisa de botão surrada, viajada, ia aparecendo, tomando forma em seu caderno. Enquanto o retrato do homem se desenhava, ela pensava na sua viagem.
Tinha um longo caminho pela frente. Seriam horas em que não poderia aliviar sua ansiedade empunhando seu lápis. Sentiu seu coração bater forte, sentiu-o disparar. Naquela manhã, quando leu o assunto do e-mail pedindo que ela viesse no fim de semana, já sabia de tudo que estaria escrito ali e achou que ficaria nervosa, que perderia o chão antes mesmo de chegar ao final da longa mensagem. Mas ela leu tudo, respirou fundo e foi descobrindo ao longo do dia que a sensação que começou a preenchê-la enquanto lia o e-mail era uma ansiedade do momento que se aproximava. Não era a sensação de medo que ela conhecia incomodamente. Medo que ela havia sentido muitas vezes, em situações não muito diferentes, e que sempre sucediam telefones, cartas ou conversas com aquela seriedade que ele exacerbou nas entrelinhas. Não que ela não estivesse envolvida, não que ele representasse menos na sua vida que as outras pessoas com quem ela havia se relacionado no passado. Aliás, desde que começou a sair com ele, teve a sensação de já ter visto aquele filme antes. Todas as pessoas com quem ela havia se identificado pareciam seguir um script, percorrer uma trilha aberta na mata: declarações, carinhos, liberdades e confissões que teimavam em acontecer sempre da mesma forma, na mesma ordem. Por alguns momentos sentiu-se incomodada por pensar assim, por comparar sua vida a um disco arranhado. Porém foram apenas alguns instantes. Ela sabia que aquela sequência de acontecimentos fora quebrada. Ela não havia desmoronado quando leu a mensagem. Ela até se esqueceu daquele correio durante o dia, no trabalho. Ora, ela conseguiu até trabalhar. Sim, estava triste. Gostava dele, afinal. Mas algo estava diferente naquela situação toda. Algo que não combinava com os outros términos que havia passado e com as semanas que os seguiam, desoladas, turvas, pesadas. E ela sabia o que era. Sabia que estava tranquila o suficiente para aceitar o pedido dele e passar o fim de semana na casa de seus pais para poderem conversar. Sabia que aquele fim de semana não seria fácil e que choraria com o que ele tinha para lhe falar. Mas, apesar da ansiedade, estava preparada. E aquela sensação de controle lhe confortava, lhe enchia de confiança. Respirou fundo e junto com o ar soltou lentamente os momentos que passara com ele, os beijos, os abraços, as brigas. Soltou tudo. Sentiu um espaço abrir-se em seu peito, um espaço que ela preencheria com o que quer que fosse: talvez até outra pessoa. De repente, o velho movimentou-se bruscamente e abriu os olhos. Olhou o relógio de metal no pulso, apanhou a sacola encardida e levantou-se pigarreando.
No caderno, ficaram faltando alguns detalhes: um traço da camisa amassada, as dobras dos dedos roliços, mas ele estava ali, com sua imagem impregnada de ansiedade e confiança. Em traços firmes, sisudos, perfeitos, estava imortalizado o velho recostado no encosto do banco, a mão sustentando o peso da cabeça, as roupas simples e o semblante cansado. Ela saiu de seu transe e voltou ao mundo. Olhou os ponteiros do grande relógio pendurado na parede. Tinha tempo. Olhou em volta e tudo começou a tomar forma: malas, lanchonete, balcão de passagens, o relógio, ônibus, lixeiras e as pessoas.

5 Comments:

Blogger Unknown said...

quando a gente pode começar a filmar???
ahahahaha

10:15 PM  
Blogger b4 said...

Égua, muleque! Peraí, rapá... Vamos com calma!

9:35 AM  
Blogger Unknown said...

nossa, b4!
sabe que eu leio seu blog muito raramente (não por não me agradar, apenas porque ainda não criei o hábito), mas sempre que o leio, parece que alguma coisa me levou a ele...
é incrível sua capacidade de colocar em palavras tantas coisas que eu sinto e já senti!

6:31 PM  
Anonymous Anônimo said...

Ti,
Muito bem, a leitura corre fluída e agradavel.
Grande beijo.

6:20 PM  
Anonymous Anônimo said...

Cheiro de salgadinho de rodoviária...
Faça uma boa viajem!
Beijos!

3:18 PM  

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