sábado, janeiro 05, 2008

Mais um conto: Cecília.

Cecília.
O trânsito estava parado e ela acabava de ouvir no rádio que houvera um acidente grave. Pela descrição da repórter e pela ambulância que a havia ultrapassado há mais ou menos 20 minutos, desconfiou que fosse à sua frente e que provavelmente iria permanecer parada por um bom tempo ainda. Beatriz olhou o relógio do painel do carro e sentiu fome. Indagou-se se estava realmente com fome ou se estava condicionada a jantar às 19:30. De qualquer forma, sentia o estômago vazio e começou a pensar que chegaria em casa e encontraria uma panela no fogão com uma sopa de legumes ou metade de uma lasanha no forno, no velho pirex de vidro com manchas de queijo queimado. Lembrou-se que suas tentativas de limpar o pirex eram cansativas e frustrantes, deixando-a com a impressão que a mancha aumentava cada vez mais. Sentiu um pouco de raiva por ter que lavar a louça de todos, mas ela era sempre a última a chegar e esta era realmente uma tarefa mais indicada para ela. O problema é que seu irmão tinha uma forte tendência a “esquecer” de passear com o cachorro e não era raro ela ter que dar uma volta no quarteirão levando o labrador pela coleira depois de limpar a cozinha. Ela sempre reclamava com a mãe, sentia-se injustiçada por seu irmão não cumprir com suas responsabilidades e ela ter que assumir uma tarefa que não era dela. Lembrou das discussões, que sempre terminava com uma porta batendo e uma noite mal dormida. Ela sentia-se mal em discutir com sua mãe. Desde a separação de seus pais as cosias estavam mais difíceis em sua casa, mas, desde aquela rápida “reunião familiar” em que dividiram as tarefas, ela, sua mãe e irmão não tinham parado para conversar a respeito. Não sentia-se forte o bastante para puxar este assunto com sua mãe. Além do mais, temia que sua mãe entrasse novamente numa crise de choro. Sentiu raiva de seu pai, mas sabia que ele tinha feito a coisa certa ao pedir o divórcio. Beatriz respirou fundo e enxugou a lágrima que desceu pelo seu rosto. Ela também estava cansada das brigas constantes que eles sempre tinham depois do jantar e se lembrou que, antes de sua irmã mais velha sair de casa, as coisas pareciam ser mais calmas. Mas ela era uma menina naquela época. Lembrou-se de seu pai tocando violão e sua irmã cantando junto dele. Ela adorava a voz de Cecília. Lembrou-se de sua irmã aumentando o volume do som do quarto que dividiam, cantando e dançando com ela em cima da cama. Lembrou das brincadeiras que faziam quando ela era bem pequena, os cinco juntos. Pronto, lá estava ela novamente lembrando-se de sua infância. Era incrível como seus pensamentos a levavam às suas memórias naquele apartamento na Alameda dos Bosques. Se indagou o que a fez lembrar novamente daquela época e fez um pequeno esforço para refazer os caminhos de seu pensamento. Foi se lembrando: ela pulando em cima da cama com a irmã, ela cantando junto de seu pai, sua irmã com as malas prontas esperando a carona da avó, as brigas de seus pais, a separação, sua mãe chorando, uma porta se batendo, as discussões com sua mãe por causa do irmão, caminhar o cachorro, limpar a cozinha, a janta no fogão... Voltou os olhos para o relógio de relance, como saindo de um transe, e depois para os carros ainda parados à sua frente. Estava definitivamente com fome. Encostou a cabeça no encosto do banco e respirou fundo.