domingo, abril 25, 2010

Dimas Josué (11/11/1954-12/04/2010)

Rio de Janeiro, 24 de abril de 2010.

Passei o dia sozinho (a não ser pelo fiel escudeiro canino, Xangô) e de certa forma acompanhado de meu pai. Estive às voltas com tarefas que eram seu hobby e que aprendi com ele: consertos e instalações na casa. O tempo todo, quase podia ouvir sua voz dizendo coisas como "cole as pontas da fita isolante" ou "segure firme a furadeira". O fato de não poder contar como ele para uma ligação com uma dúvida me deixou com uma passageira sensação de desamparo em alguns momentos, logo tomada por uma de segurança, como a de um bom aluno que carrega consigo as lições ouvidas ao professor.

Chegada a noite, e após um jantar acompanhado de uma cerveja forte, chorei por quase 1 hora e decidi aproveitar o isolamento humano para extravazar a dor, a ausência, o luto. Abri o "Bahia em Pauta" e li os comentários sobre meu pai. Colegas, amigos, primos, irmãos e meu avô; descrevem meu pai utilizando palavras como mestre, pilar, líder, referência. Sempre tive meu pai como um ídolo, um ícone. Exemplo de inteligência, caráter, senso de justiça e, sobretudo, de integridade; sempre o ouvi com respeito e admiração. Sabendo agora que não sou o único, sinto-me confortado por ter sido um dos principais e próximos de seus aprendizes.

Certa vez, apreensivo e ansioso frente ao final de minha graduação e à recorrente dúvida sobre futuro profissional, lhe disse que estava preocupado porque não sabia o que eu queria fazer de minha vida. Meu pai, químico industrial e engenheiro eletricista por formação, analista de sistemas e auditor fiscal, me disse: "eu também não sei o que eu quero fazer de minha vida". E pronto.

Muito antes disso, voltando do colégio sozinho com meu pai, começou a tocar uma música no som do carro. Ele disse: "Escute essa música. É sobre a ditadura". É a primeira lembrança que tenho de realmente ouvir uma música e sua letra. Era "Chame Ladrão". A próxima faixa no CD era "Meu Guri". Sempre que as ouço, lembro de meu pai e da sensação maravilhada que tive ali, no carro, de descobrir Chico Buarque.

Recentemente, num dos finais de semana que passei em Salavador, meu pai me disse que estava com medo de chegar ao ponto de não ser ele mesmo, de sobreviver em um estado de perda da consciência. E em sua última noite, apontando para letras escritas em uma cartolina por não conseguir articular palavras, meu pai pediu que lhe colocassem uma meia antiembólica. Dali a alguns minutos, perguntou se poderia ser suspensa a injeção diária para prevenir o mesmo problema, uma vez que usaria as meias. Ao obter uma resposta negativa, imediatamente pediu, com um gesto indignado, que lhe retirassem as tais meias.

Naquele fim de semana - assim como ouvi-lo dizer que eu e minha irmã éramos seu maior orgulho e a maior herança que ele deixaria para a humanidade - pude dizer-lhe que sinto muito orgulho dele e que o amo.

Obrigado por ser meu mentor, minha meta, meu pai.

segunda-feira, abril 14, 2008

Eme, esse, ene.

A noite estava calma. O outono já se fazia sentir na cidade e, apesar do mormaço quente, o céu ficou nublado durante todo o dia. Com o pôr do sol, o calor foi diminuindo e um vento leve entrava pela janela de seu apartamento. Cecília estava sentada no sofá, com o laptop no colo, as pernas cruzadas e apoiadas na cadeira virada de lado para que o encosto não ficasse na frente da TV. Nem olhava para a televisão enquanto apagava seus emails que falavam de peças que ela não iria assistir, de shows onde não iria dançar e de pessoas que ela não queria saber. De repente, uma janela apareceu na sua tela, com o rosto sorridente da irmã na foto tirada quando tinha 6 anos e a frase que ela sempre escrevia: "olah pessoa". Tinham começado a se tratar como "pessoa" quando eram adolescentes e até hoje tinham este código. Não lembrava como aquilo tinha começado, mas se sentia próxima à irmã quando ela lhe chamava assim. "Oi pessoa!", respondeu. "e aih, jah foi ve meu pai?". "Ainda não, Bia. Estou um pouco confusa com tudo o que aconeteceu.". Já tinha desistido de corrigir a irmã nas conversas virtuais, mas sempre se sentia um pouco incomodada com o jeito dela escrever. E, não fazia muito, ela também costumava enxugar suas conversas na internet, até que mandou um email com um "td bem" para o chefe, gerando algumas risadas na reunião semanal. Decidiu radizcalizar e passou a escrever todo e qualquer texto que digitava com a gramática de baixo do braço. "imagino...". Beatriz deixou a cabeça cair pra trás e se apoiar no encosto do sofá por alguns segundos. Não queria continuar aquela conversa. "Como estão as cosias por aí?", mudou de assunto. "normal... daniel tah no quarto dele, minha mae no dela e eu to aki na sala". "Mas está tudo bem?". A irmã continuou: "ih, ciça... teve o maior quebra pau aki hj. estou ficando cansada disso.". Nem me fale, pensou Cecília. Ela sabia que o clima na casa de sua mãe não estava bom, mas não sabia o que poderia fazer para mudar aquilo. Na verdade, tentava se convencer de que não podia fazer nada a respeito, mas no fundo sentia-se incomodada por apenas observar o processo de desmantelação de sua casa. Jogava a culpa em seu pai, e sempre falava com a mãe e com a irmã que tudo aquilo havia começado por causa da separação. Queria realmente acreditar naquilo e esquecer do fato de que, na verdade, ela havia sido a primeira a fugir da situação, indo morar com a avô com a desculpa de ter um ambiente mais tranquilo para estudar. Pensou em aconselhar a irmã a sair de casa, quem sabe vir morar com ela, mas no fundo as duas sabiam que temeriam por sua mãe se Beatriz saisse de casa. "mas deixa isso pra lah... a gente vai no hospital sabado de manha com minha tia. nao quer vir?". Cecília respirou fundo. Sentiu um rápido calafrio e olhou para o violão encostado na parede. "Pode ser". Marcaram o horário e ainda conversaram sobre trabalho, sobre namorados, sobre o filho da prima que havia acabado de nascer e sobre o jantar, antes de se despedirem. Cecília fechou o laptop, encostou novamente a cabeça no sofá e deixou uma lágrima rolar pelo rosto. Ela iria encontrá-lo no sábado.

sexta-feira, fevereiro 22, 2008

Novo texto: Eu te amo

Eu te amo

Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Teu paletó enlaça o meu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás só fazendo de conta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir.

(Chico Buarque e Tom Jobim)


Olhou para a cama vazia. Sentiu o peito apertado. Sentiu a cabeça pesada. Sentiu uma lágrima descer pelo rosto. Dois travesseiros, apesar de só precisar de um. Quando se deitava, ainda sentia o cheiro dele nos lençóis. Ficou parada, na porta do quarto, por alguns minutos, mas pareceu uma eternidade. Sete anos, pensou. E se sentia boba por lembrar de quando se conheceram.

Tinha que terminar um trabalho de Botânica, mas as amigas insistiram. Não conseguia recusar o convite delas naquela época. Sua vida era bem agitada, gostava de sair e tomar tequila no balcão com sua turma. Mas no fundo ela estava cansada de tudo aquilo quando o conheceu. Estava solteira havia quase quatro anos e sentia-se sozinha apesar de muitas vezes voltar para casa acompanhada. Naquela noite estava no balcão tentado pedir uma cerveja já havia algum tempo, quando ouviu alguém falando: amigo, atenda à menina aqui! Sentiu-se estremecer com a voz grave, séria. Quando se virou, sentiu-se hipnotizada por um sorriso simples e sincero. De nada, disse ele sem modéstia, para quebrar o gelo, quando o garçom deixou a garrafa na frente deles. Ela apenas sorriu de volta, olhando-o nos olhos. Ficaram o resto da noite naquele mesmo lugar, apoiados no balcão. Falaram sobre flores e pássaros. Falaram sobre futebol, política e religião, sobre carnavais passados, sobre olhos e olhares, sobre sol e nuvens, noite e escuridão, sobre amores, esperanças e desejos, sobre medo, fúria e raiva. Falaram sobre pudor e tesão, lucidez e insanidade, sobre Vênus e Marte. De vez em quando ele pedia: amigo, atenda à menina aqui!

Ainda era recente. Ela havia se acostumado a encontrá-lo na volta do trabalho. Marcavam na estação do metrô ou na galeria perto do apartamento. Comiam alguma coisa, conversavam, riam, discutiam, trocavam carícias. Ele a ouvia, aconselhava, reclamava dela e lhe cobria de elogios. Ele perguntava sua opinião, dizia que a amava e olhava-a nos olhos. Ela se sentia segura com ele. Mas enxugou as lágrimas que haviam se multiplicado em seu rosto e finalmente entrou no quarto. Sentou-se na cama, tirou a sandália e procurou espaço embaixo das gavetas do armário. O armário superlotado contrastava com a sensação de vazio que a preenchia, como um nó subindo por sua garganta. E ela só conseguia ver as coisas dele no emaranhado de roupas e sapatos. Respirou fundo e soltou um ar soluçado. Sentia uma agonia, um desespero, uma inquietude. Viu as roupas dele penduradas nos cabides, escondendo as suas. Virou-se e se caiu deitada na cama. Ainda era muito recente. Levantou o rosto, apoiou nos braços cruzados e, no criado mudo, olhou para a foto de sua formatura. Voltou no tempo novamente.

Seu apartamento estava cheio com seus primos e primas. Estava tensa e ansiosa com a com a presença dos pais, tios e avós perguntando sobre sua vida, sobre as entrevistas para emprego e seu futuro. Havia brigado com ele na véspera, na colação de grau, e se sentiu mal durante quase toda a festa. Eles estavam sentados na mesa, sozinhos, incomodados com a situação e orgulhosos demais para conversarem. Ela percebeu o movimento dele enquanto olhava distraída para a pista de dança. Quando se virou o viu fazendo sinal pro garçom: amigo, atenda à menina aqui! Ela respondeu mais uma vez ao seu sorriso e o beijou. Mais tarde, voltando pra casa, ela se surpreendeu quando ele parou o carro perto da biblioteca e passou a mão em sua coxa. Ela sentiu um arrepio na espinha. Saíram do carro, deram as mãos e caminharam até o fundo do prédio. Ele se encostou na parede e perguntou: lembra? Como se fosse ontem, ela disse. Fizeram amor no mesmo lugar que tinham feito pela primeira vez: em pé, com as pernas entrelaçadas, apoiados na quina da parede escura, atrás da biblioteca da universidade. Sentiu que jamais esqueceria aquela noite.

Quis parar de chorar. Levantou-se da cama e arrastou-se para o banho. A enxurrada do chuveiro esconderia suas lágrimas.

sábado, janeiro 05, 2008

Mais um conto: Cecília.

Cecília.
O trânsito estava parado e ela acabava de ouvir no rádio que houvera um acidente grave. Pela descrição da repórter e pela ambulância que a havia ultrapassado há mais ou menos 20 minutos, desconfiou que fosse à sua frente e que provavelmente iria permanecer parada por um bom tempo ainda. Beatriz olhou o relógio do painel do carro e sentiu fome. Indagou-se se estava realmente com fome ou se estava condicionada a jantar às 19:30. De qualquer forma, sentia o estômago vazio e começou a pensar que chegaria em casa e encontraria uma panela no fogão com uma sopa de legumes ou metade de uma lasanha no forno, no velho pirex de vidro com manchas de queijo queimado. Lembrou-se que suas tentativas de limpar o pirex eram cansativas e frustrantes, deixando-a com a impressão que a mancha aumentava cada vez mais. Sentiu um pouco de raiva por ter que lavar a louça de todos, mas ela era sempre a última a chegar e esta era realmente uma tarefa mais indicada para ela. O problema é que seu irmão tinha uma forte tendência a “esquecer” de passear com o cachorro e não era raro ela ter que dar uma volta no quarteirão levando o labrador pela coleira depois de limpar a cozinha. Ela sempre reclamava com a mãe, sentia-se injustiçada por seu irmão não cumprir com suas responsabilidades e ela ter que assumir uma tarefa que não era dela. Lembrou das discussões, que sempre terminava com uma porta batendo e uma noite mal dormida. Ela sentia-se mal em discutir com sua mãe. Desde a separação de seus pais as cosias estavam mais difíceis em sua casa, mas, desde aquela rápida “reunião familiar” em que dividiram as tarefas, ela, sua mãe e irmão não tinham parado para conversar a respeito. Não sentia-se forte o bastante para puxar este assunto com sua mãe. Além do mais, temia que sua mãe entrasse novamente numa crise de choro. Sentiu raiva de seu pai, mas sabia que ele tinha feito a coisa certa ao pedir o divórcio. Beatriz respirou fundo e enxugou a lágrima que desceu pelo seu rosto. Ela também estava cansada das brigas constantes que eles sempre tinham depois do jantar e se lembrou que, antes de sua irmã mais velha sair de casa, as coisas pareciam ser mais calmas. Mas ela era uma menina naquela época. Lembrou-se de seu pai tocando violão e sua irmã cantando junto dele. Ela adorava a voz de Cecília. Lembrou-se de sua irmã aumentando o volume do som do quarto que dividiam, cantando e dançando com ela em cima da cama. Lembrou das brincadeiras que faziam quando ela era bem pequena, os cinco juntos. Pronto, lá estava ela novamente lembrando-se de sua infância. Era incrível como seus pensamentos a levavam às suas memórias naquele apartamento na Alameda dos Bosques. Se indagou o que a fez lembrar novamente daquela época e fez um pequeno esforço para refazer os caminhos de seu pensamento. Foi se lembrando: ela pulando em cima da cama com a irmã, ela cantando junto de seu pai, sua irmã com as malas prontas esperando a carona da avó, as brigas de seus pais, a separação, sua mãe chorando, uma porta se batendo, as discussões com sua mãe por causa do irmão, caminhar o cachorro, limpar a cozinha, a janta no fogão... Voltou os olhos para o relógio de relance, como saindo de um transe, e depois para os carros ainda parados à sua frente. Estava definitivamente com fome. Encostou a cabeça no encosto do banco e respirou fundo.

terça-feira, novembro 20, 2007

Novo texto:
Final da Primavera (no Blog da Gente).

Final da Primavera.
Ainda deitada, olhou o quarto quieto. Cômoda, criado mudo e armário, todos combinando com a grande cama de madeira maciça. Algumas fotos na parede marrom claro. O grande espelho no canto. Seu quarto tinha um aspecto formal, com uma decoração sóbria quebrada apenas pelo confortável puff junto à sua estante de livros. O carpete creme lhe conferia um ar aconchegante. Algo, porém, lhe parecia estranho naquela manhã. Tinha uma sensação de ver tudo fora de foco e com um estranho tom alaranjado. Sabia que a mudança de posição do sol no verão alterava bastante a iluminação e as cores que seu quarto assumia. Olhou o feixe de luz que entrava pela cortina blackout entreaberta. Esse ano passou muito rápido, pensou. Ia assim despertando, quase sem notar a levíssima dor no estômago, quando então se lembrou da noite anterior e da discussão. Virou-se para o outro lado para ficar frente a frente com ele. Ele tinha os olhos fechados, mas não parecia dormir. Estava com um semblante sério, quase fechado. De fato, ao perceber a movimentação, abriu os olhos e os dois se olharam.

Ela tinha certeza que a noite anterior seria um divisor de águas naqueles três ou quatro meses em que estavam juntos. Há mais de uma semana ela andava nervosa, ansiosa. O que a deixava ainda mais inquieta era o fato que ele parecia não se importar ou mesmo perceber. Tanto que pareceu surpreso quando ela finalmente perguntou, enquanto comiam a lasanha pré-cozida, o que você quer? Com um sorriso sem graça, ele disse que queria terminar a lasanha. É sério, o que você quer comigo? Disparou. Falou com uma convicção tão grande que ele não se deu conta que ela logo se arrependeu da pergunta direta. Ela temia que ele entrasse num discurso que ela já tinha ouvido sobre cobranças, compromissos, deixar o que está bom do jeito que está. Mas ele respirou fundo, desviou o olhar e não disse nada. Um minuto, dois, dez. Ela não sabia quanto tempo tinha o encarado esperando a resposta. Você não vai responder? Perguntou impaciente. Ele pareceu assustar-se com a pergunta áspera. É para responder mesmo? Indagou colocando novamente o seu sorriso amarelo. Ela perdeu a paciência de vez e partir daí entraram numa discussão sem sentido. Ela chamando-o de cínico e ele insistindo em dizer que não sabia o que ela queria ouvir. Até que ela se levantou e disse que ia dormir. Ainda o ouviu perguntar: você quer que eu vá para minha casa? A pergunta foi como uma flecha. Ela quis dizer que não, que não suportaria passar a noite sozinha, que preferia que ele ficasse e a abraçasse. Faça o que você achar melhor.

Agora, de frente para ele, sentia novamente o coração disparado. Tinha a sensação de não ter dormido nada naquela noite e realmente não lembrava de nenhum sonho que comprovasse que havia dormido algumas horas. Agora, olhando-o nos olhos, ainda esperava uma resposta, mas não quis perguntar de novo. Achou que entrariam novamente naquela discussão e definitivamente não queria aquilo novamente. Mas para sua surpresa, o semblante sério se desfez e ele abriu um sorriso diferente da noite anterior. Parecia sincero. Me abrace. O pedido dele trouxe uma sensação de paz e ela achou que tudo se resolveria. Sentiu o abraço dele como uma fortaleza a sua volta, uma sensação de segurança que ela não se lembrava de ter sentido antes. De repente seu medo se dissipou como se nunca tivesse existido. Ia lhe dizer que era só isso que ele precisava ter feito ontem e sempre que ela se sentisse insegura por qualquer razão, mas não teve tempo. Acordou de repente e, ainda deitada, olhou o quarto quieto. Nada parecia diferente, embora pouco se pudesse ver com as cortinas fechadas. Por alguns instantes tentou se lembrar se ele tinha ficado depois da discussão ou não. Mas virou-se para o outro lado para ficar frente a frente com ele. Ele tinha os olhos fechados e dormia profundamente. Estava com um semblante sereno, leve. Não teve nenhuma reação, por mais que ela fizesse força para balançar a cama. Será que ele ainda demoraria a acordar, pensou.

segunda-feira, novembro 05, 2007

Estou escrevendo no blog DA GENTE... PRA GENTE!
Abraços!
Tiago

domingo, outubro 21, 2007

A retratista

Chegou com pressa, jogou-se no banco, recolheu uma das pernas e se sentou em cima. Abriu a bolsa e retirou seu caderno. Ela o abriu automaticamente, na página marcada pelo lápis. Sua ansiedade, sua pressa, seu aparente quase-desespero, tudo culminava naquele momento. Só então respirou fundo. Não olhava o mundo a sua volta simplesmente porque ele não existia até aquele momento: seu caderno aberto sobre a perna e o lápis em uma das mãos; com o corpo apoiado sobre o braço e a página totalmente em branco à sua frente, ela estava pronta. Olhou em volta e tudo começou a tomar forma: malas, lanchonete, balcão de passagens, o relógio, ônibus, lixeiras e as pessoas. Deu-se conta que a rodoviária estava movimentada e que aquele era o cenário perfeito: a espera, o cansaço, o calor, tudo parecia lhe favorecer, tornando a vida preguiçosa e lenta. Voltara ao mundo apenas por alguns instantes, para uma busca ávida, inquieta, porém rápida. Seus olhos percorreram as filas de embarque à sua direita, as pessoas em pé no balcão à esquerda e os bancos à frente até que ela fixou o olhar. Toda a sensação de inquietude pareceu desaparecer e o lápis tomou vida. Os traços, a princípio, não faziam sentido para os vizinhos no banco da rodoviária, que arriscavam um olhar curioso. Aos poucos o velho adormecido no banco, com a cabeça apoiada na mão, a pele enruguecida, cansada, a camisa de botão surrada, viajada, ia aparecendo, tomando forma em seu caderno. Enquanto o retrato do homem se desenhava, ela pensava na sua viagem.
Tinha um longo caminho pela frente. Seriam horas em que não poderia aliviar sua ansiedade empunhando seu lápis. Sentiu seu coração bater forte, sentiu-o disparar. Naquela manhã, quando leu o assunto do e-mail pedindo que ela viesse no fim de semana, já sabia de tudo que estaria escrito ali e achou que ficaria nervosa, que perderia o chão antes mesmo de chegar ao final da longa mensagem. Mas ela leu tudo, respirou fundo e foi descobrindo ao longo do dia que a sensação que começou a preenchê-la enquanto lia o e-mail era uma ansiedade do momento que se aproximava. Não era a sensação de medo que ela conhecia incomodamente. Medo que ela havia sentido muitas vezes, em situações não muito diferentes, e que sempre sucediam telefones, cartas ou conversas com aquela seriedade que ele exacerbou nas entrelinhas. Não que ela não estivesse envolvida, não que ele representasse menos na sua vida que as outras pessoas com quem ela havia se relacionado no passado. Aliás, desde que começou a sair com ele, teve a sensação de já ter visto aquele filme antes. Todas as pessoas com quem ela havia se identificado pareciam seguir um script, percorrer uma trilha aberta na mata: declarações, carinhos, liberdades e confissões que teimavam em acontecer sempre da mesma forma, na mesma ordem. Por alguns momentos sentiu-se incomodada por pensar assim, por comparar sua vida a um disco arranhado. Porém foram apenas alguns instantes. Ela sabia que aquela sequência de acontecimentos fora quebrada. Ela não havia desmoronado quando leu a mensagem. Ela até se esqueceu daquele correio durante o dia, no trabalho. Ora, ela conseguiu até trabalhar. Sim, estava triste. Gostava dele, afinal. Mas algo estava diferente naquela situação toda. Algo que não combinava com os outros términos que havia passado e com as semanas que os seguiam, desoladas, turvas, pesadas. E ela sabia o que era. Sabia que estava tranquila o suficiente para aceitar o pedido dele e passar o fim de semana na casa de seus pais para poderem conversar. Sabia que aquele fim de semana não seria fácil e que choraria com o que ele tinha para lhe falar. Mas, apesar da ansiedade, estava preparada. E aquela sensação de controle lhe confortava, lhe enchia de confiança. Respirou fundo e junto com o ar soltou lentamente os momentos que passara com ele, os beijos, os abraços, as brigas. Soltou tudo. Sentiu um espaço abrir-se em seu peito, um espaço que ela preencheria com o que quer que fosse: talvez até outra pessoa. De repente, o velho movimentou-se bruscamente e abriu os olhos. Olhou o relógio de metal no pulso, apanhou a sacola encardida e levantou-se pigarreando.
No caderno, ficaram faltando alguns detalhes: um traço da camisa amassada, as dobras dos dedos roliços, mas ele estava ali, com sua imagem impregnada de ansiedade e confiança. Em traços firmes, sisudos, perfeitos, estava imortalizado o velho recostado no encosto do banco, a mão sustentando o peso da cabeça, as roupas simples e o semblante cansado. Ela saiu de seu transe e voltou ao mundo. Olhou os ponteiros do grande relógio pendurado na parede. Tinha tempo. Olhou em volta e tudo começou a tomar forma: malas, lanchonete, balcão de passagens, o relógio, ônibus, lixeiras e as pessoas.